As Histórias são a melhor ferramenta no mundo!
É certo que é uma ferramenta tão eficaz para causar tanto o bem, como o mal. Mas não há ferramenta multifuncional que se compare às Histórias. E não puxem do canivete suíço, que em 1894 já as histórias tinham salvo e destruído muita coisa. Os canivetes não existiam no pré-histórico, mas os antepassados das narrativas visuais, sim. As grandiosas pinturas-rupestres.
O poder das histórias é inegável. E não quero trazer para cima da mesa apenas as histórias dos livros ou aquelas que se contam à volta da fogueira. Falaremos delas, que são importantes, mas refiro-me também às histórias que se contam através da Arte. Das mais variadas formas de arte. E, pensando bem, deveria referir-me à “narrativa”. Essa sim, tem um poder inigualável na vida humana. Está presente em tudo o que fazemos e, a maneira como é conduzida ou interpretada, pode fazer a diferença.
Mas até onde chega o poder desta ferramenta?
Até que ponto a narrativa nas coisas, principalmente na Arte, consegue de facto realizar o objetivo para o qual surgiu? E que objetivo é esse realmente? Será que a Arte e a criação só fazem sentido se cumprirem uma missão de “agente social”? A estética tem valor por si só? E o poder de tudo o que uma determinada Narrativa carrega, é suficiente para criar impacto e causar a diferença no pensamento e ação de quem a segue? Ou é preciso que esse “outro” também faça o seu papel? E que papel é esse? Este artigo propõe uma reflexão sobre o poder de transformação e capacidade de “toque” que a narrativa - a arte de contar, e a própria Arte, têm na vida humana e na sociedade. Através de exemplos concretos, as reflexões procuram respostas às questões acima colocadas. Inspirado numa conversa com a designer e ilustradora, Nani Brunini, e tendo como ponto de partida o trabalho que desenvolveu no seu livro silencioso, “Discórdia”, alguns dos assuntos discutidos ao longo deste texto, mostram a sua opinião sobre os tópicos mencionados acima, e também a importante reflexão entre a dimensão das Palavras e o Concreto e as Imagens e o Abstrato/Subjetivo. Ao longo do artigo irei introduzir pequenos excertos da minha conversa com Nani (para melhor ilustrar exemplos). Aquela que começou por ser uma viagem de pesquisa sobre o poder da Narrativa por trás das coisas, nomeadamente, das diversas formas de Arte, e sobre a dualidade entre as histórias escritas e as histórias ilustradas, sobre o que é concreto e o que é mais subjetivo, transformou-se numa reflexão muito maior. Uma reflexão sobre o verdadeiro significado e papel da arte, da criação e das histórias na sociedade e no quotidiano das pessoas.
Assim como a Arte.
As palavras só se transformam em histórias quando são escutadas.
E a Arte? Só o é quando é apreciada?
E o propósito?
Será que é sempre cumprido?
É praticamente de concordância geral, que a Arte [seja em que forma for] tem um papel importante na vida humana. Em primeiro lugar para aquele que cria, servindo a arte como uma forma de expressão, de exteriorização de algo, que pode ser mais ou menos positivo, e que pode servir como uma ferramenta crucial para a pessoa que cria, tanto na resolução de conflitos internos, como na passagem de uma mensagem que surge mais ou menos urgente aos olhos dessa pessoa. Olhando, desta vez, para aquele que aprecia, que consome e absorve, a arte pode assumir diferentes papéis na sua vida. Desde objeto de identificação, através do qual, a pessoa-espectador consegue expressar-se também, identificando-se com a peça em si, e utilizando os seus significados para exprimir a sua identidade. Serve também como campo de reflexão, para alguém singular ou para grupos, de entretenimento, de abstração, de crítica, ou até de opressão. Independentemente da forma de arte que estejamos a pensar, existe um fator comum a todas elas, e talvez aquele que tenha maior importância quando de facto existe a intenção de transmitir algo maior/uma mensagem - E refiro-me à Narrativa. A narrativa presente no processo de criação de algo, desde o nascimento e desenvolvimento da ideia/conceito até à forma de execução e manifestação do mesmo, é extremamente importante e determinante na forma como se vai “consumir” essa forma de arte, e na forma como se vai de facto interpretá-la [lê-la, ouvi-la, observá-la, senti-la etc].
Mas será que a Arte deve ter então, quase de forma obrigatória, o papel de “transformador social”? A Arte deve nascer com o intuito de resolver um problema? Deixo que estas questões assentem um pouco nas vossas mentes, enquanto faço um enquadramento do projeto e conversa que inspiraram toda esta discussão.
Contexto:
Nani nasceu no Brasil, em São Paulo, e vive atualmente em Lisboa. Ao longo da sua vida viveu em Londres e São Francisco. Depois de viver sob diferentes e controversas influências políticas (Bolsonaro, Trump, Brexit) nasce a ideia base para o seu livro - das experiências pessoais e observações sobre as discordâncias de diferentes ideais políticos entre pessoas, com os quais não conseguem conviver ou simplesmente debater.
Nani conta-nos que,“O Discórdia nasceu de um exercício que a gente estava fazendo na Ar.Co, que era fazer um livro silencioso. Um livro que não tinha texto, apenas imagens, e que podia ser sobre qualquer coisa.
E a ideia base deste livro acabou por ser uma brincadeira com essa coisa de fazer um livro silencioso que era muito “barulhento”. Com o tempo descobri que o tema de Discórdia era sobre discordar, pessoas que não sabem ouvir-se e falam umas por cimas das outras, e não apenas sobre discordar sobre política, que é como ele nasceu.”
Pego então no contexto deste livro para introduzir e voltar à questão colocada anteriormente. Deve a Arte ter obrigatoriamente um papel de consciencialização e de agente social no seu público, ou pode valer apenas pelo seu sentido estético? Se pensarmos que a Arte deve ter um papel de consciencialização ou de transmissão de uma mensagem, estamos, de certa forma, a assumir que deve solucionar ou dar resposta a determinados problemas. O que não seria totalmente errado de se pensar. De facto, a Arte e a Criação de algo pode ser uma excelente forma de influência. É provável que todos consigamos pegar em pelo menos um exemplo de como alguma forma de arte nos tenha influenciado, educado ou sensibilizado para algum assunto. Mesmo que tivesse sido por vontade própria, de querer saber mais sobre um determinado tema, ou tivesse sido sem intenção, porque decidimos ver um filme, em que a nossa intenção era apenas o entretenimento, mas alguma coisa mais retiramos daquela experiência. A verdade é que a Arte é simultaneamente a experiência e a interpretação. Se, por um lado, é o resultado das experiências, expressas de forma mais ou menos consciente, de quem a cria. É também verdade que aquilo que o produto final irá ser, significar ou não, depende sempre da forma de como este é visto, consumido, em que contexto e em que altura da vida da pessoa. A intenção inicial do autor, quando cria uma determinada peça, pode nem chegar à pessoa que se cruza com a sua obra. Pode chegar apenas uma parte, e pode ser completamente distorcida. Também pode acontecer o caso de o artista não ter qualquer intenção maior por trás da sua criação, e o outro encontrar um enorme significado nela.
Ilustração de Nani Brunini - Retirada do site www.nanibrunini.com
Durante a conversa que tive com Nani, ela deu-me um exemplo que me fez pensar muito na forma como, na verdade, a verdadeira resposta para o papel da Arte e da Criação nas sociedades e no dia-a-dia das pessoas, andar à volta de qualquer coisa como “depende”. Refiro-me ao designer Philippe Starck, o criador do famoso espremedor de limões. Este exemplo mostra como uma única peça pode ser, ao mesmo tempo, uma peça de arte e uma peça de design, ou seja, um produto. Se a intenção era ser os dois ao mesmo tempo, ou ser um ou outro, não importa muito. O que realmente importa perceber, é que a forma como utilizamos as coisas, a forma como interpretamos mensagens e as aplicamos na nossa vida está logo à priori influenciada por quem criou esse objeto ou mensagem. Não só pela intencionalidade que lhe quis dar, mas também pela própria forma como optou por criar o objeto em si ou a forma como deu vida à mensagem. Por outro lado, tudo isto depende também da forma como a pessoa a quem se destina, ou se cruzou com o objeto/mensagem, o interpreta. Existem inúmeras condições que nos fazem olhar para algo e, na nossa mente, associar esse algo a uma determinada finalidade. Mesmo que essa finalidade destoe muito daquilo que era a intenção do artista/designer/criador. Neste caso, provavelmente, se a finalidade que quisermos dar a este espremedor for, de facto, espremer limões, então, ironicamente (ou não), talvez não seja propriamente o espremedor mais prático do mundo. Mas, se a finalidade que lhe tencionamos dar for decorativa então este espremedor já vai estar, de certo modo, a espelhar aquela que é a personalidade da pessoa que o adquire. E agora, a questão que se coloca é:
Podemos considerar este um caso de “mau design”?
Nani disse-me, “Não se pode chamar a isso mau design apenas porque teve um propóstio diferente daquele para que foi pensado”.
E a verdade é que a Arte, na sua essência, é subjetiva. Mesmo a mais concreta. E desta forma, respondendo à questão central acima colocada, também o seu papel é subjetivo e fluído. Não existe um único papel, mas sim vários. A Arte ensina, exemplifica, valoriza, oprime, “dá voz”, serve de base para a criação de personalidade e identidade. E não tem de ser apenas uma dessas coisas de uma vez. Pode ser tudo isto ao mesmo tempo. É tão verdadeiro e importante o facto de existir Arte que transmite mensagens importantes, arte interventiva que muda o mundo, como existir arte que vale apenas pela sua estética. O simples ato de saber apreciar algo é, por si só, já muito importante. Mesmo que essa “importância” não se manifeste no momento, mas apenas no futuro. A arte desempenha um papel muito importante no sentido crítico e de expansão de horizontes da mente. Nem sempre é uma experiência imediata.
A arte desempenha um papel muito importante no sentido crítico e de expansão de horizontes da mente. Nem sempre é uma experiência imediata.
Durante a minha conversa com Nani, e também com várias outras pessoas de diferentes contextos sociais e profissionais, perguntei-lhes se, na opinião delas, a Arte poderia ser considerada tão importante quanto a Medicina, ou qualquer outra ciência ou disciplina mais “exata”. Na sua opinião, Nani diz que:“O primeiro pensamento que tive foi que os dois são importantes, só que um é vital e o outro não. Mas depois fiquei a pensar, até neste exemplo do último ano de pandemia, não faz sentido, de facto, colocarmos os artistas/arte como serviço essencial. Mas ao mesmo tempo imagine só passar a pandemia sem Netflix, sem jogos, sem livros, sem nada desse género. Por isso eu penso, que a arte não é algo que seja tangível, mas que tem o seu lado vital para as nossas vidas.”. À semelhança do que ela pensa, também as outras pessoas dizem o mesmo! Acho que todos conseguimos compreender que, obviamente, ambas as dimensões são importantes de maneiras diferentes. E, quase de forma automática, se nos dissessem que só poderíamos escolher uma para considerar mais importante, seria certo que iriamos responder: “Então é a Medicina”. E isto deve-se ao facto de associarmos, tal como Nani mencionou, uma importância vital à medicina e não colocarmos a Arte na mesma linha. E se olharmos para a questão de um outro ponto de vista? Sem questionar que a importância que a medicina tem para as pessoas é mais observável, isso não significa que a Arte, dentro do espectro do subjetivo, também não seja igualmente importante, ou até mais, em determinados momentos da vida das pessoas. Agora, se não tivéssemos de responder de forma tão concreta, e podendo fazer este exercício de perspetiva, se voltarmos a pegar na questão da vitalidade – Talvez a Arte seja também vital. Infelizmente, ou felizmente, para quem procura um argumento para dar Voz à necessidade de se Investir mais na Arte e na Cultura em Portugal, acabámos de viver um dos períodos mais críticos e difíceis para a Humanidade – uma Pandemia. O palco ideal para poder ilustrar esta discussão. Nunca a Medicina e a Arte e Cultura estiveram de forma tão impiedosa na linha da frente, a lutar pelo menos lado e, provavelmente, sem saberem…
Quero então pegar no exemplo do projeto criado por Bruno Nogueira, em 2020, durante a pandemia – “Como é que o Bicho mexe?”. Começou por ser um momento de conversa todas as noites, através das lives do Instagram, entre Bruno e alguns convidados, discutindo sobre as coisas mais banais, às conversas importantes. Rapidamente este projeto transformou-se numa pequena comunidade, onde pessoas do país inteiro podiam assistir e interagir com inúmeras pessoas do mundo cultural e artístico português. Eu, que assisti a vários, não me esqueço de passar a noite do primeiro 25 de abril vivido em estado de confinamento, a assistir, em direto, o artista Vhils a esculpir, ao som de “Grândola Vila Morena”, a cara Zeca Afonso na parede da sala de sua casa. Algo tão simples como este momento tornou-se para muitos uma experiência diferente, inesquecível e até cultural. Na mesma linha deste exemplo, entram todos os artistas, desde músicos, atores e até mesmo designers ou artistas gráficos, que conseguiram, através do digital, criar momentos de fuga para a realidade que se viveu durante o último ano e meio. Artistas e criadores de conteúdos que fizeram companhia a quem se sentia sozinho. E é isto que Bruno Nogueira, tantos outros artistas e a Arte têm de especial e vital à vida humana – a capacidade de criar realidades diferentes aos olhos de cada pessoa. A capacidade para nos fazer sentir o bom e o mau, saber intensificar o que já é bom e fazer refletir ainda mais sobre o que é mau. Nunca teríamos ultrapassado esta pandemia sem a Medicina, da mesma forma que nada na vida seria o que é sem a ciência ou a economia. E, é igualmente verdade que nunca teríamos sobrevivido a esta pandemia sem um livro, um filme, uma música, uma tela para pintar ou canetas para desenhar. Estaríamos vivos, sim. Mas parte de nós já não. E por isso é uma sobrevivência diferente. A vitalidade da arte para a vida humana não é algo tangível, mas é inegável quando falamos do intelectual. E o físico não resiste sem a mente.
Fotografia | Pexels Stock
Posso concluir que a palavra “depende” tem uma força brutal nesta matéria da Arte (o que é, para que serve?). Depende de muita coisa e de muitas partes, sendo que, quase sempre, o efeito que tem é o da transformação individual e coletiva. E é aqui que regresso ao ponto que iniciou este artigo – a Arte de transformar, de contar algo e criar impacto com isso. Tal como questionar o que é Arte, qual o seu papel e importância na vida humana, considero de igual pertinência perceber como é que realmente o que as pessoas criam pode ter tanto impacto e dizer-nos tanto, sem, muitas vezes, sabermos explicar bem porquê. A diferença entre algo tocar a nossa mente ou ficar esquecido e perdido na azáfama da vida quotidiana, é a Narrativa por trás desse algo.A narrativa por trás da peça de arte, do livro, do filme ou da música. Novamente, talvez o verdadeiro poder que se esconde por trás do mundo artístico e cultural, não seja tanto sobre o que é a pintura, a história ou a letra da música. É a forma como os traços e a tinta se misturam, a forma como as personagens falam e como as ações na história parecem surgir todas misturadas e, a forma como os acordes se entrelaçam uns nos outros e nos arrepiam. Não é tanto sobre o que é contado, mas sim a forma como é contado. E é isto que faz com que a Arte tenha força suficiente para transmitir mensagens que se ficam na nossa mente por muito tempo. O mesmo não acontece com uma notícia no telejornal.
A mesma mensagem, transmitida através de um jornalista, em rápidos minutos ou reinterpretada através de uma composição cinematográfica brilhante, (num documentário), não nos vai marcar com a mesma intensidade. Uma boa narrativa, com intenção, tem o poder de criar uma das sensações mais poderosas de sempre – o sentimento de identificação. Somos seres sociais e precisamos de sentir que fazemos parte de algo. Todos os dias partilhamos e criamos pequenas histórias. Cada obra de arte ou produto artístico é uma história diferente. O que a Arte tem na verdade de tão especial, é a intensidade com que gera o sentimento de identificação em quem se cruza com ela.